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Crítica: “Glen ou Glenda?” (1953); um terror filosófico sobre repressão e 'cross-dressing'

Qual é o limite de uma libido reprimida por uma sociedade doentia, de falsos moralistas?

FICHA TÉCNICA DO FILME:
Título original: Glen or Glenda; Títulos alternativos: I Led 2 Lives; Diretor e roteiro: Ed Wood Jr.; Estrelando: Ed Wood Jr., Bela Lugosi, Lyle Talbot; País: Estados Unidos da América; Lançamento: abril de 1953; Orçamento: U$ 20 mil (estimado); Gênero: Drama, reflexão, sociologia; Duração: 65 minutos originalmente / 74min. (1984, EUA) / 68min. (DVD, EUA)

Há quem considere este um dos piores filmes de todos os tempos por se tratar de um dos piores e mais mal-avaliados da carreira do Ed Wood. Certamente, eu discordo.

E quem fala isso não pode jamais ser levado a sério. Várias coisas me dão base para afirmar que é um filme excelente. À começar pela participação quase que paralela — que mais faz parecer outro filme até; com a primorosa fala filosófica do icônico astro Béla Lugosi.

O filme traz também um tema incompreendido que pode ter seus momentos entediantes, mas traz boas questões. É um Cult, e não merecia tão pouco da crítica. Ele tem charme e qualidades.

UM FILME PARA INFLAMAR PRECONCEITOS:
Este filme é o exemplo mais que perfeito de que um filme, qualquer ele que seja, e independente de quão polêmico seja o tema que aborde, que uma obra inteligente pode estar infinitamente a frente do seu tempo, transcendendo o tempo com suas formas de mensagens.

E aliás, o que temos visto no cinema atual tem sido quase o oposto de uma evolução inteligente, digamos.


'Glen ou Glenda?' é como uma cutucada incisiva de prego enferrujado numa ferida fresquinha e potencialmente perigosa. Ele não se intimida em mexer com as estruturas mais comuns dos costumes, dos tabus, preconceitos e conservadorismos — e isto, especialmente, tratando-se de um filme da época dos anos 1950.

Mas que cai como uma luva para os dias de hoje, o nível de "aceptatividade" de termos como gays e travestis ainda causam certo desconforto na orelha de muitos homens mundo afora, e essa é a maior prova de que o filme funciona muito bem em sua proposta, mesmo mais de 60 anos depois.

Envelheceu bem.

De qualquer forma, o filme dá explicações em cenas que o preconceito parte de ambos os sexos, é uma questão social, e um problema de sentimento, logo que só quem passa pela situação de não estar se sentindo realmente confortável em sua própria pele, em suas maneiras e estilo de vida e afetivo, que sabe como é de verdade, o fato de ser tratado com desigualdade.


Como o filme diz em outras palavras: Nós devemos ter o poder pra controlar se queremos ser mulher ou homem, quem sabe nenhum dos dois, isso entre nós e nós, nem digo Deus porque segundo os criacionistas ele já ditou por você, mas a própria ciência tá ai pra provar diariamente que a natureza e Deus são idéias opostas, e que todo ser humano deve ter livre arbítrio conforme sua espontânea vontade de ser ou não de determinado sexo, conforme a maneira como se sente.

Não há como negar o quanto o filme frisa o comum preconceito de quem releva a condição de integridade psicológica do cidadão que quer usar roupas do sexo oposto.

A INTELIGÊNCIA SUTIL PRESENTE NO FILME:

Com toda a elegância inteligente presente nos monólogos filosóficos de contexto sociocultural o filme dá as cartas sem medo de perder o jogo, é um filme que mostra a bizarra realidade sem analogias muito enigmáticas.

Apesar de tudo, e por mais "chocante" que possa ter sido, o filme lida com coisas normais, poderia ser tranquilamente interpretado como um filme que explora o universo feminino presente em cada homem, com a devida diferença de porcentagem em cada personalidade.

O legal de tudo em Glen or Glenda são as formas como se apresentam idéias. Glen, o sujeito em caso pode representar com perfeição muitas pessoas que até hoje que se sentem atraídos pelo universo feminino mas têm medo de se exporem pela retaliação preconceituosa previsível, e ficam aprisionadas num dilema, infelizes. Parece que tais pessoas a sociedade não evolui nunca, só se molda lentamente conforme cada nova e grande polêmica.

Os costumes se transformam mas os hábitos sociais ficam, e as pessoas criam regras baseadas nas únicas outras regras de comportamento que ditam os "tabus" de toda uma sociedade, um ciclo quase interminável. É o que penso.

A ÓTIMA (E SIMPLES) ANALOGIA DO CHAPÉU:

Em certa parte do pensamento do filme vemos uma humilde comparação, a forma como o homem usa chapéu e como a mulher o usa. "Sete a cada dez homens usam chapéis. Sete a cada dez homens são calvos. Mas e as mulheres?". O desconforto desnecessário em demonstrar continuamente toda a virilidade presente no universo masculino da época era impressionantemente bobo. Logo que muitos dos homens que ficavam calvos até antes da meia-idade por usar chapéis apertados incessantemente, causando assim a própria calvice. Enquanto que as mulheres sempre colocam o conforto em primeiro lugar.

Este efêmero exemplo demonstra um lado muito simples das coisas e um pensamento muito direto, não há porque ter vergonha de gostar de se vestir como mulher, homens colocam o estresse e necessidade de estarem sempre bem-mal vestidos acima do conforto de cada dia de usar roupas simples e com isso, demonstra uma irracionalidade masculina que das mais simples, faz orgulho a qualquer homem somente pensar em querer ser mulher.

Então, o filme pode se resumir a uma palavra: desconforto.  Ele não relute em fazer você se perguntar: você sente-se confortável com o sexo que 'tem'? Pense duas vezes. Não há nada de errado em achar que você pode estar enganado. Temos de ser felizes como somos por dentro - mesmo que isto não agrade ou que se choque contra o dito social.

A PARTICIPAÇÃO ACERTADA DE BÉLA LUGOSI:

MONÓLOGO:
"A constante busca do homem
pelas coisas desconhecidas...
Extraídas da esfera
infinita do tempo...
Trazem à luz, muitas coisas
surpreendentes.
Surpreendentes?
Porque parecem ser novas. Súbitas.
Mas a maioria não é nova.
O sinal dos tempos...
A vida começou."

Béla Lugosi é um mestre nesse filme. Ele apresenta a introdução (que por si só já é uma maravilha) e narra todo o filme de forma sinistra e similar - algo que realmente parece não fazer sentido algum muitas das vezes, mas que conforme há um avanço da história até que incrivelmente vai fazendo sentido.

Em partes que mais lembram teatro, onde partes por si só não aparentam significar nada, muito pelo contrário, causam uma extrema confusão, a junção de tudo e complexidade de todo um contexto funciona com esplendor e nos faz pensar bastante.

Um fato interessante do Glen or Glenda é o Terror nas "entre-linhas", um filme que no meu humilde entender deve causar pânico, mas principalmente visto do ponto de vista de alguém que vive algo parecido com o personagem protagonista, com todos os dilemas sociais e tudo mais, até talvez por isso seja tão incompreendido até pra Ed Wood.

Todos que tem interesse por filmes que abordam o tema de transgêneros devem conferir esse, por mais que não goste de filmes antigos ou do cinema do Wood, é uma boa, pelo menos faz refletir.

ALGUMAS CURIOSIDADES:
- O filme foi um dos primeiros a abordar abertamente o universo transsexual no cinema - inclusive foi duramente criticado e mal aceito pelo estúdio que o produziu (que alegou ser muito chocante para a época).

- A cirurgia de mudança de sexo de Christine Jorgensen que ganhou as manchetes dos períodicos nacionais dos Estados Unidos em 1952 foi a inspiração para o produtor George Weiss resolver financiar um filme para faturar com o fato. Wood convenceu Weiss que ele era o melhor para dirigir o filme (Wood se travestia de mulher na vida real). Contudo, o filme falava sobre travestis, diferente do encomendado. Wood então colocou cenas extras sobre a cirurgia de mudança de sexo.

- Além de Ed Wood ter estrelado no filme como Glen (ou Glenda), - de acordo com a 2a esposa do cineasta, Kathy O'Hara, a mãe de Wood vestia-o com roupas de garotas quando ainda criança, porque ela sempre sonhara em ter uma filha. Para o resto de sua vida, Wood seguiu com o hábito, apesar de ter mantido-se sempre heterossexual.


- Esse foi o único filme dirigido por Wood que não foi produzido por ele mesmo. Ele convenceu Lugosi - que na época, estava pobre e com um péssimo vício em morfina; a aparecer no filme. Wood interpretou o personagem-título, mas nos letreiros usou o pseudônimo de "Daniel Davis".1 Sua namorada Dolores Fuller interpreta a namorada de Glen. Fuller não foi avisada do travestismo de Wood, nem conhecia detalhes do roteiro. Wood raramente se vestia de mulher quando ela estava no set. Quando Fuller assistiu ao filme, disse que ficou humilhada com a experiência.

- Outro travesti chamado Glenda aparece na novela de Wood Killer in Drag.

- No filme de Tim Burton, a produção do filme "Glen ou Glenda?" é contada com destaque, sendo reencenadas várias cenas com Johnny Depp no papel de Ed Wood.

- Um remake pornográfico do filme chamado Glen & Glenda foi realizado em 1994 com o mesmo roteiro mas com inserções de cenas de sexo explícito.

- No filme O filho de Chucky, os bonecos malévolos Chucky e Tiffany chamam seu filho de "Glen ou Glenda".

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